segunda-feira, 20 de junho de 2011

Acompanhe o livro - A história sem fim - este é o primeiro capítulo

Michael Ende

A Historia Sem Fim

Martins Fontes
São Paulo - I993

ATSIBARRAFLA
KOREANDER KONRAD KRAL - PROPRIETÁRIO
Esta inscrição encontrava-se na porta envidraçada de uma pequena loja,
mas, naturalmente, só tinha este aspecto quando, do interior sombrio da loja,
se olhava para a rua através da vidraça.
Lá fora, era uma manhã cinzenta e fria de novembro, e chovia a cântaros.
As gotas escorriam pela vidraça e por cima das letras floreadas. Tudo o que
se via através da vidraça era uma parede manchada pela chuva do outro lado
da rua.
De repente, a porta se abriu com tanta força que os sininhos de latão, que
pendiam sobre ela, começaram a tilintar e só pararam depois de alguns
instantes.
O causador deste tumulto era um garoto baixo, gordo, de uns dez ou
onze anos. O cabelo castanho-escuro, molhado, caía-lhe sobre o rosto; tinha
o casaco encharcado de chuva e trazia a tiracolo uma pasta escolar presa por
uma correia. Estava um pouco pálido e ofegante, mas apesar de há pouco
parecer ter muita pressa, continuava parado diante da porta aberta, como se
estivesse pregado no chão.
À sua frente estendia-se um compartimento comprido e estreito cujos
fundos se perdiam na escuridão. Nas paredes havia estantes que iam do chão
ao teto, abarrotadas de livros de todos os tamanhos e formas. No chão,
empilhavam-se montes de grandes manuscritos, e em algumas mesinhas,
havia também montes de livros menores, encadernados em couro, com capas
enfeitadas a ouro. Por trás de uma parede de livros da altura de um homem,
colocada ao fundo do compartimento, brilhava a luz de um candeeiro. Desse
local iluminado, erguia-se de vez em quando uma argola de fumo, que ia
aumentando de tamanho para depois desaparecer lá em cima, na escuridão.
Pareciam sinais de fumaça usados pelos índios para enviarem mensagens de
colina em colina. Era óbvio que havia alguém ali e, com efeito, o rapaz
ouviu uma voz bastante rude, que por detrás da parede de livros dizia:
— Ou entre, ou saia, mas feche a porta. Está ventando.
O rapaz obedeceu e fechou a porta de mansinho. Depois, aproximou-se
da parede de livros e espreitou cautelosamente para o outro lado. Um homem
atarracado estava sentado por detrás dos livros, numa poltrona de orelhas, de
couro muito gasto. Vestia um terno escuro, amarrotado, que parecia muito
usado e como que empoeirado. Tinha a barriga apertada em um colete
estampado. O homem era calvo, mas por cima das orelhas havia dois tufos
de cabelos brancos espetados. O rosto era vermelho e lembrava a cara de um
buldogue feroz. O nariz bulboso sustentava um par de óculos pequenos,
dourados. Além disso, fumava um cachimbo curvo que lhe pendia dos
lábios, obrigando-o a torcer a boca. Segurava sobre os joelhos um livro que
devia estar lendo, pois fechara-o, deixando o grosso indicador da mão
esquerda entre as páginas — como um marcador, por assim dizer.
O homem tirou os óculos com a mão direita, examinou o rapaz pequeno
e gordo que se mantinha de pé à sua frente com o casaco encharcado, e,
fechando um pouco os olhos, o que lhe acentuou o ar de ferocidade, limitouse
a murmurar:
— Minha nossa!
Depois, abriu novamente o livro e recomeçou a ler.
O rapaz não sabia muito bem o que fazer, por isso deixou-se ficar
simplesmente ali, fitando o homem com os olhos muito abertos. Finalmente,
o velho fechou novamente o livro, deixando o dedo entre as páginas, e
resmungou:
— Preste atenção, menino! Eu não gosto de crianças. Sei que está na
moda fazer um grande alarido quando se trata de vocês. . . Mas comigo não!
Não gosto nada, nada de crianças. Para mim, não passam de uns patetas
choramingas, de uns desajeitados que estragam tudo, sujam os livros de
geléia, rasgam as páginas, e não querem nem saber dos problemas e
preocupações que os adultos possam ter. Digo isto para que você não se
iluda. Além do mais, não tenho livros para crianças e nem venderei outros
livros a você. Espero ter sido claro!
Disse tudo isto sem tirar o cachimbo da boca. No fim, tornou a abrir o
livro e recomeçou a leitura.
O rapaz assentou em silêncio e fez menção de se retirar; de alguma
forma, porém, pareceu-lhe que não poderia aceitar aquele sermão sem
protestar e, por isso, voltou-se uma vez mais e disse baixinho:
— Nem todos são assim.
O homem ergueu lentamente os olhos do livro e voltou a tirar os óculos.
— Você ainda está aí? Diga-me uma coisa: o que é preciso fazer para eu
me ver livre de você? O que você tinha de tão importante para dizer?
— Não era importante, respondeu o rapaz ainda mais baixinho. Eu só
queria dizer que nem todas as crianças são assim como o senhor disse.
— Então é isso! O homem levantou as sobrancelhas com ar de espanto.
E certamente você é a grande exceção, não é?
O rapazinho gordo não soube o que responder. Encolheu ligeiramente os
ombros e voltou-se para ir-se embora.
— Bela educação!, ouviu a voz resmungona dizer atrás de si. Isto você
não deve ter muita; senão, pelo menos tinha-se apresentado.
— Meu nome é Bastian, disse o rapaz. Bastian Baltazar Bux.
— Mas que nome curioso!, resmungou o homem. Com esses três bês.
Mas você não tem culpa de ter esse nome; não foi você que o escolheu. Eu
me chamo Karl Konrad Koreander.
— Três ks, disse o rapaz com um ar sério.
— Hum!... resmungou o velho. Correto!
Deu umas baforadas no cachimbo. — Mas pouco interessa como nos
chamamos, porque não vamos voltar a nos ver. Agora eu gostaria de saber
uma coisa. Por que é que você entrou com tanta pressa em minha loja?
Parecia que você estava fugindo de alguma coisa. Estava?
Bastian acenou que sim com a cabeça. Seu rosto redondo empalideceu,
os olhos abriram-se ainda mais.
— Provavelmente assaltou a caixa de uma loja, supôs o senhor
Koreander, ou bateu em uma velhinha ou fez qualquer coisa dessas que
vocês costumam fazer. A polícia está atrás de você, rapaz?
Bastian sacudiu a cabeça.
— Vamos, responda, disse o Sr. Koreander. De quem você está fugindo?
— Dos outros.
— Que outros?
— Dos rapazes da minha classe.
— Por quê?
— Porque nunca me deixam em paz.
— O que eles fazem?
— Ficam me esperando na saída da escola.
— E depois?
— Ficam me xingando, me empurram e riem de mim.
— E você não faz nada?
O Sr. Koreander fitou o rapaz por algum tempo com ar reprovador, e
depois perguntou:
— E por que você não lhes dá um murro no nariz? Bastian olhou para ele
com os olhos arregalados.
— Não gosto de bater. E, além disso, não sou muito bom no boxe.
— E brigar, você também não sabe? perguntou o Sr. Koreander. Você
sabe correr, nadar, jogar bola, fazer ginástica? Ou não' sabe fazer nada disso?
O rapaz fez que não com a cabeça.
— Em outras palavras, você é um molengão, não é verdade? disse o Sr.
Koreander.
Bastian encolheu os ombros.
— Mas falar você sabe, disse o Sr. Koreander. Por que não responde
quando eles zombam de você?
— Já fiz isso uma vez. . .
— E o que aconteceu?
— Eles me colocaram numa lata de lixo e amarraram a tampa. Fiquei
chamando umas duas horas até que alguém me ouviu.
— Hum, resmungou o Sr. Koreander, e agora você não se atreve a fazer
outra vez a mesma coisa.
Bastian fez que sim com a cabeça.
— Tudo isso quer dizer, concluiu o Sr. Koreander, que você é um
medroso.
Bastian baixou a cabeça.
— Mas aposto que você é um bom aluno, não é? O melhor da classe, que
só tira dez, o preferido dos professores, ou não?
— Não, disse Bastian, mantendo os olhos baixos. No ano passado eu
repeti.
— Pelo amor de Deus! exclamou o Sr. Koreander. Então você é um
fracasso total.
Bastian não disse nada. Deixou-se simplesmente ficar onde estava, os
braços caídos, o casaco pingando.
— O que é que eles dizem quando zombam de você?, quis saber o Sr.
Koreander.
— Não sei. . . Tudo o que lhes vem à cabeça.
— Por exemplo?
— Gordo, Gordão! Parece um balão! Quando sobe na árvore se
esborracha no chão!
— Esta não tem muita graça, disse o Sr. Koreander. E que dizem mais?
Bastian hesitou antes de responder:
— Maluco, cabeça de vento, mentiroso, convencido. . .
— Maluco? Por quê?
— Sabe, às vezes eu falo sozinho.
— E o que é que você fica falando?
— Imagino histórias, invento nomes e palavras que ainda não existem e
outras coisas assim.
— E você conta essas coisas para você mesmo? Por quê?
— Porque não interessam a mais ninguém.
O Sr. Koreander calou-se durante algum tempo, pensativo.
— E os seus pais, que dizem disso tudo?
Bastian não respondeu logo. Depois de algum tempo, murmurou:
— O meu pai não diz nada. Nunca diz nada. Não quer saber de nada.
— E a sua mãe?
— Já não está conosco.
— Os seus pais são separados?
— Não, disse Bastian. A minha mãe morreu.
Nesse momento tocou o telefone. O Sr. Koreander levantou-se com
alguma dificuldade da sua poltrona e, arrastando os pés, dirigiu-se para um
pequeno gabinete que ficava nos fundos da loja. Tirou o fone do gancho e
Bastian, com um pouco de esforço, ouviu-o dizer o nome. Mas, depois, o Sr.
Koreander fechou a porta do gabinete e não se ouviu mais nada, além de um
murmúrio abafado.
Bastian deixou-se ficar onde estava, sem saber como aquilo tudo tinha
acontecido e porque ele havia dito e confessado tudo aquilo. Detestava que
lhe fizessem perguntas. De repente, apavorado, deu-se conta de que ia
chegar atrasado à escola: sim, tinha que se apressar, correr. . . mas deixou-se
ficar onde estava, indeciso. Alguma coisa o retinha, e ele não sabia ao certo
o que era.
Continuava a ouvir no gabinete a voz abafada do Sr. Koreander. A
conversa ao telefone não acabava mais.
Bastian deu-se conta de que durante todo o tempo estivera olhando
fixamente o livro que o Sr. Koreander tinha nas mãos e que se encontrava
agora sobre a poltrona de couro. Era como se o livro tivesse uma espécie de
magnetismo que o atraía irresistivelmente.
Aproximou-se da poltrona, estendeu a mão devagar, e tocou o livro — e
no mesmo instante ouviu dentro de si um "clique", como se tivesse sido pego
em uma ratoeira. Bastian teve a estranha sensação de que aquele toque
desencadeara qualquer coisa que agora devia forçosamente seguir seu curso.
Levantou o livro e olhou-o por todos os lados. A capa era de seda cor-decobre
e brilhava quando ele mudava o livro de posição.
Folheando rapidamente o volume, observou que estava impresso em
duas cores diferentes. Não parecia ter gravuras, mas as letras que iniciavam
os capítulos eram grandes e muito ornamentadas. Examinando melhor a
capa, descobriu duas serpentes, uma clara e outra escura, que mordiam uma
a cauda da outra, formando uma figura oval. Dentro dessa figura, em letras
cuidadosamente traçadas, estava o título:
A História sem Fim
As paixões humanas são misteriosas, e as das crianças não o são menos
que as dos adultos. As pessoas que as experimentaram não as sabem
explicar, e as que nunca as viveram não as podem compreender. Há pessoas
que arriscam a vida para atingir o cume de uma montanha. Ninguém é capaz
de explicar por quê, nem mesmo elas. Outras arruínam-se para conquistar o
coração de uma determinada pessoa que nem quer saber delas. Outras, ainda,
destroem-se a si mesmas porque não são capazes de resistir aos prazeres da
mesa — ou da garrafa. Outras há que arriscam tudo o que possuem num jogo
de azar, ou sacrificam tudo a uma idéia fixa que nunca se pode realizar.
Algumas pensam que só podem ser felizes em outro lugar que não naquele
onde estão e vagueiam pelo mundo durante toda a vida. Há ainda as que não
descansam enquanto não conquistam o poder. Em suma, as .paixões são tão
diferentes quanto o são as pessoas.
A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros.
Quem nunca passou tardes inteiras diante de um livro, com as orelhas
ardendo e o cabelo caído sobre o rosto, esquecido de tudo o que o rodeia e
sem se dar conta de que está com fome ou com frio. . .
Quem nunca se escondeu embaixo dos cobertores lendo um livro à luz
de uma lanterna, depois de o pai ou a mãe ou qualquer outro adulto lhe ter
apagado a luz, com o argumento bem-intencionado de que já é hora de ir
para a cama, pois no dia seguinte é preciso levantar cedo. . .
Quem nunca chorou, às escondidas ou na frente de todo mundo, lágrimas
amargas porque uma história maravilhosa chegou ao fim e é preciso dizer
adeus às personagens na companhia das quais se viveram tantas aventuras,
que foram amadas e admiradas, pelas quais se temeu ou ansiou, e sem cuja
companhia a vida parece vazia e sem sentido. . .
Quem não conhece tudo isto por experiência própria provavelmente não
poderá compreender o que Bastian fez em seguida.
Olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mesmo tempo, arrepios de
frio e uma sensação de calor. Ali estava uma coisa com a qual ele já havia
sonhado muitas vezes, que tinha desejado muitas vezes desde que dele se
apoderara aquela paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro
dos livros!
Tinha de o conseguir a qualquer custo!
A qualquer custo? Isso era muito fácil de dizer! Mesmo que o livro
custasse mais do que os três marcos e cinqüenta pfennings da sua mesada,
que trazia no bolso e eram todo o dinheiro que possuía... aquele antipático
Sr. Koreander já lhe tinha explicado com toda a clareza que não lhe venderia
nenhum livro. E com certeza também não o daria de presente. Não havia
esperanças. . .
E, no entanto, Bastian sabia que não podia ir embora sem o livro.
Percebia agora que tinha entrado na loja por causa daquele livro, que o livro
o tinha atraído de alguma forma misteriosa, porque queria pertencer a ele.
Porque, de fato, a ele pertencera desde sempre!
Bastian escutou atentamente o murmúrio que continuava a se ouvir no
gabinete.
Sem se dar conta do que fazia, escondeu o livro embaixo do casaco e
apertou-o contra o corpo com ambos os braços. Sem fazer barulho, recuou
até à porta da loja, olhando sempre para a outra porta, a do gabinete. Ergueu
o trinco com cuidado. Não queria que os sininhos de latão fizessem barulho,
por isso entreabriu a porta de vidro só o necessário para poder escapulir para
a rua. Fechou a porta com cuidado pelo lado de fora, sem fazer barulho.
Só então começou a correr.
Os cadernos, os livros da escola e o estojo que estavam dentro da pasta
saltavam e faziam barulho ao ritmo dos seus passos. Começou a sentir uma
pontada do lado, mas continuou a correr.
A chuva escorria-lhe pelo rosto e entrava-lhe para o pescoço. O frio e a
umidade passavam pelo casaco, mas Bastian nem o notava.
Sentia calor, e não era só de correr.
A sua consciência, que não tinha dado sinal de vida enquanto ele estava
na loja, começava a despertar. Todas as justificativas que antes lhe tinham
parecido tão convincentes perdiam agora o seu valor, derretiam-se como
bonecos de neve ao sopro de um dragão que lança chamas pela boca.
Tinha roubado. Era um ladrão!
O que fizera era ainda pior do que um simples roubo. Sem dúvida aquele
livro era único e insubstituível. Fora, certamente, o maior tesouro do Sr.
Koreander. Roubar a um violinista o seu violino ou a um rei a sua coroa, era
muito pior do que assaltar um banco.
Enquanto corria, mantinha o livro bem apertado contra o corpo, por
baixo do casaco. Não o queria perder, apesar do muito que lhe ia custar. Era
tudo o que tinha no mundo.
Pois é claro que agora não podia voltar para casa.
Tentou imaginar seu pai, sentado no grande aposento em que trabalhava.
À sua volta havia dezenas de moldes de gesso de dentaduras humanas, pois
seu pai era dentista. Bastian nunca tinha pensado se seu pai gostava ou não
do trabalho que fazia. Pela primeira vez ocorrera-lhe isto, mas nunca mais
poderia perguntar aquilo a seu pai.
Se fosse agora para casa, o pai, interrompendo o trabalho, sairia da
oficina com seu avental branco, provavelmente trazendo na mão uma
dentadura de gesso, e perguntaria: "Já voltou?" "Já" responderia Bastian.
"Você não teve aula hoje?" Era como se visse o rosto triste e calmo de seu
pai; sabia que não seria capaz de lhe mentir. Mas também não podia dizerlhe
a verdade. Não, a única coisa que podia fazer era ir embora, para
qualquer lado, para muito longe. Seu pai nunca deveria saber que o filho era
um ladrão. E talvez nem sequer reparasse que Bastian já não estava em casa.
Esse pensamento era quase consolador.
Bastian deixara de correr. Agora ia devagar e, ao final da rua, avistou a
escola. Sem se dar conta, tinha tomado o caminho de costume. A rua
parecia-lhe completamente vazia, apesar de haver algumas pessoas. Mas,
para o aluno que chega tarde à escola, o mundo que o rodeia sempre parece
morto. De qualquer modo, Bastian tinha medo da escola, cenário das suas
derrotas diárias; medo dos professores, que o corrigiam amavelmente ou lhe
despejavam suas iras; medo dos outros rapazes, que dele zombavam e não
perdiam uma oportunidade sequer de lhe mostrar como ele era fraco e
desajeitado. Não era a primeira vez que a escola lhe parecia uma prisão onde
ele sofria um castigo infindável, que duraria até que ele crescesse e que tinha
de suportar com muda resignação.
Mas, agora, quando percorria os corredores cheios de ecos, que
cheiravam a cera e a casacos molhados, quando o silêncio ameaçador lhe
tapava os ouvidos como bolas de algodão e quando, finalmente, chegou em
frente da porta da sua classe, pintada com a mesma cor verde-espinafre das
paredes, percebeu de repente que também ali não tinha mais nada a perder.
Tinha de ir embora. E o melhor era fazê-lo já.
Mas para onde?
Bastian tinha lido em seus livros histórias a respeito de rapazes que se
alistavam em um navio e corriam o mundo em busca de sua sorte. Alguns
tornavam-se piratas ou heróis, outros voltavam ricos para casa ao fim de
muitos anos, sem que ninguém os reconhecesse.
Mas Bastian não tinha coragem para tanto. Além disso, estava
convencido de que não o aceitariam como grumete. Nem sequer sabia o
caminho para um porto onde houvesse navios apropriados para tão
arriscados empreendimentos.
Para onde ir, então?
E, de repente, lembrou-se do lugar certo, do único lugar onde — pelo
menos por agora — ninguém o iria procurar e encontrar. O sótão era grande
e escuro. Cheirava a pó e a naftalina. Não se ouvia nenhum ruído, a não ser o
tamborilar suave da chuva sobre as chapas de cobre do enorme telhado.
Grandes vigas enegrecidas pelo tempo erguiam-se a distâncias regulares
sobre o chão de madeira, encontravam-se lá em cima com as vigas do forro e
desapareciam na escuridão. Daqui e dali pendiam teias de aranha, grandes
como redes de dormir, que balançavam suave e fantasmagoricamente à
corrente de ar. Lá de cima, da clarabóia, descia um raio de luz
esbranquiçada.
A única coisa viva, neste lugar onde o tempo parecia ter parado, era um
ratinho que saltitava sobre as tábuas do assoalho e que deixava um rastro de
pegadas minúsculas impressas no pó. Entre as pegadas havia um risco fino
feito pela cauda que se arrastava no chão. De repente, o animalzinho parou e
ficou à escuta. E logo — fsst! — desapareceu num buraco entre as tábuas.
Ouviu-se o ruído de uma chave girando na grande fechadura. Devagar, a
porta do sótão se abriu rangendo, e, por alguns instantes, um longo raio de
luz atravessou o compartimento. Bastian entrou e fechou logo a porta, que
voltou a ranger. Meteu a grande chave pelo lado de dentro da fechadura e
deu-lhe a volta. Depois, empurrou o ferrolho e suspirou aliviado. Agora, era
impossível encontrá-lo. Ninguém viria procurá-lo ali. Raramente alguém ia
até o sótão — disso ele tinha certeza — e mesmo que alguém tivesse alguma
coisa para fazer ali nesse dia ou no dia seguinte, encontraria a porta fechada.
E a chave tinha desaparecido. Mesmo que, de alguma forma, conseguissem
abrir a porta, Bastian teria tempo para se esconder entre os trastes guardados
no sótão.
Pouco a pouco seus olhos se habituaram à escuridão. Conhecia bem
aquele lugar. Seis meses antes, o diretor da escola pedira-lhe que o ajudasse
a transportar um grande cesto de roupa cheio de impressos e papéis velhos,
que deveriam ser guardados no sótão. Fora então que vira onde estava
guardada a chave da porta: num armário de parede, pendurado no último
patamar da escada. Desde então, nunca mais tinha pensado nisso. Mas agora
lembrara-se outra vez.
Bastian começou a tiritar, pois o casaco estava encharcado e ali em cima
fazia muito frio. Antes de mais nada, tinha de procurar um lugar confortável.
Afinal, ele ia ficar muito tempo ali. Por quanto tempo? Bem, nisso ele não
queria pensar, nem na fome e na sede que em breve começaria a sentir.
Começou a explorar o local.
O sótão estava entulhado de toda a espécie de trastes, uns caídos, outros
em pé: estantes cheias de dossiês e livros de atas que já há muito tempo não
se utilizavam, carteiras empilhadas e manchadas de tinta, uma armação em
que estavam pendurados uma dúzia de mapas velhos, vários quadros-negros,
cuja tinta preta se descascara, fogões de ferro enferrujados, aparelhos de
ginástica inutilizados, tais como um cavalo, cujo revestimento de couro
estava tão rasgado que o forro saía lá de dentro, bolas de ginástica
rebentadas, um monte de colchões de ginástica velhos e manchados, e além
disso alguns animais empalhados, roídos pelas traças, entre eles uma enorme
coruja, uma águia real e uma raposa, toda a espécie de retortas químicas e
recipientes de vidro rachados, uma máquina eletrostática, um esqueleto
humano pendurado numa espécie de cabide, e muitas caixas e caixotes
cheios de velhos colchões de ginástica. Se se deitasse em cima deles, seria
como se estivesse sentado num sofá. Arrastou-os para debaixo da clarabóia,
onde havia mais luz. Perto dali estavam empilhadas algumas mantas da
tropa, rasgadas e bastante empoeiradas, mas que ainda podiam servir.
Bastian foi buscá-las. Tirou o casaco molhado e pendurou-o no cabide,
juntamente com o esqueleto. O monte de ossos balançou um pouco para cá e
para lá, mas Bastian não teve medo. Talvez porque estivesse habituado a
coisas muito parecidas em sua casa. Tirou também as botas encharcadas. De
meias, sentou-se sobre as pernas cruzadas em cima dos colchões de
ginástica, e cobriu os ombros com uma manta cinzenta, como um índio.
Tinha junto de si a pasta — e o livro de capa cor-de-cobre.
Pensou que, nesse momento, seus colegas deveriam estar na aula de
Língua. Talvez estivessem fazendo uma redação sobre algum tema
desinteressante.
Bastian olhou para o livro.
"Gostaria de saber", disse para si mesmo, "o que se passa dentro de um
livro quando ele está fechado. É claro que lá dentro só há letras impressas
em papel, mas, apesar disso, deve acontecer alguma coisa, porque quando o
abro, existe ali uma história completa. Lá dentro há pessoas que ainda não
conheço, e toda a espécie de aventuras, feitos e combates — e muitas vezes
há tempestades no mar, ou alguém vai a países e cidades exóticos. Tudo isso,
de algum modo, está dentro do livro. É preciso lê-lo para o saber, é claro.
Mas antes disso, já está lá dentro. Gostaria de saber como. . ."
E, de repente, sentiu que aquele momento tinha algo de solene.
Endireitou-se no assento, pegou o livro, abriu-o na primeira página e
começou a ler
A História sem Fim

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